12.3.08

Velho conto novo


O dia está quente, a universidade está cheia, mas nada disso realmente importa ante o impasse da gaiola de vidro do laboratório 5.

— Vai, me come logo!

— Quero não!

— Adiante, botemos termo logo a isso. Que agonia!

— Agonia de todo seu semelhante, senhor rato branco 312.

— Tem razão, dona cobra 98. Sâo dons dos répteis a razão e a parcimônia.

— Sim, só assim trocamos de pele. Sem trocar de caráter.

— Ah! tudo bem, não se apresse então. Não sei de fato o que é pior: ser devorado ou assistir às barbaridades cometidas contra os meus.

— O que espera? É um laboratório. Barbárie para uns é pesquisa para outros.

— Espetáculo aterrador, em particular conosco roedores. Um filme de terror a repetir e repetir.

— Sei, daqueles bem mequetrefes, senhor rato.

— Quantas vezes somos esquartejados, esticados, moídos, eletrocutados, macerados?

— Não pense que pra mim é fácil. Eu nem gosto de rato de laboratório, são como frangos de granja: não têm gosto de nada. Fossem ainda ratazanas de esgoto, temperadas pelo chorume.

— Não vou entrar nesse mérito, dona cobra. Também existem testes de outras disciplinas que nos confinam em labirintos. Testes de reconhecimento de cor sob pena de eletrochoques. Um repertório sem fim de sadismos pra testar nossa sociabilidade.

— Essa palavra pega fogo na boca: sociabilidade. Sim, os humanos adoram essa palavra. Até porque são incapazes de aplicá-la em de fato.

— Também sei de histórias que usam humanos como cobaias. São chocantes. Não só no campo das ciências médica ou biológica... Também nas teorias econômicas. Dona cobra, eles são capazes de condenar um continente inteiro à fome só pra testar suas teorias.

— Não são de confiança, mas até aí qual a novidade?

— Nem é novidade que nos referenciam pejorativamente, dona cobra. Quando se diz que um sujeito é um rato, o que imagina? Um ladino, um pilantra, um ladrão ou um viciado.

— Características também atribuídas a uma raposa. Rárárá, não lamente tanto. O que dizer de uma pessoa que é uma cobra? Traiçoeira, vil, venenosa e por aí vai.

— Poderíamos entre nossos pares criar a expressão "aquele rato é uma pessoa!", mas o que somos nós no imaginário dessa gente? O bicho que trucida o gato no desenho animado? A peste de uma cidadezinha que acaba dominada por um flautista? Ou, no seu caso, o réptil que seduziu Eva.

— Eu, culpada desde o Gênese. Depois demônio dos mares e fornecedor oficial dos venenos do mundo. Pois é, o diabo só podia mesmo encarnar numa cobra. Pelo menos tem senso de humor, senhor rato.
Estudantes na mesa ao lado começam os trabalhos.

— Dona cobra, veja tamanha humilhação. Veja, nos pegam pelo rabo... note os alfinetes... vão abri-lo de cima a baixo sem anestesia alguma. Note o desespero dos parentes colados ao vidro do aquário 14.

— É… senhor rato, bicho mata pra comer, eles matam pra ver como é. Assim sua ciência avança e avançam pra não sei onde. Nem mesmo sua tecnologia, tecnologia que ajudamos a testar, é capaz de libertá-los… Seria, não fosse o bicho que corre atrás do próprio rabo sem ter sequer desenvolvido a notocorda.

— Serve pra conter e subjugar, dona cobra. Natureza, sim. É da natureza deles. Mãe natura tão desnaturada essa. Macacos é o que são! Falo sob o risco de ofender um ramo mais nobre dos primatas.

— Pergunto eu se não faríamos o mesmo.

— A raiz de todo mal, senhor rato, não estaria naquele sistema todo pra acasalar? Todos aqueles penduricalhos sentimentais, todo aquele rito idiota, toda opressão contra a própria razão de ser bicho e simples.

— Ah, deve ser o casamento à moda humana.

— Sim, eles casam e prometem a armadilha. Se confinam em sua fé e tradição, eis o pilar traiçoeiro, a pedra de afiar a faca do algoz.

— Sim, depois vem a educação dos filhotes mimetizando os mesmos costumes e preceitos.

— Não quero ser um roedor impertinente, mas acho que estamos na nossa hora.

— E isso não lhe causa arrepios?

— A morte ou o rito da morte?

— Tudo... incluindo esse esquartejamento aqui da mesa em frente.

— Cada qual com seu batente, dona cobra.

— Também chegará minha hora, que eu prefiro chamar de troca definitiva de pele. Não tardará, apenas me poupam e me engordam, quase como um pedido de desculpas por terem quase exterminado minha espécie.

— No caso dos roedores não há muito problema… facilmente nos reproduzimos. Nossa libido não desaparece nem sob tais condições.

— Nem sob o horror de ver seu semelhante humilhado e dilacerado?

— Aprendemos várias coisas com esses macacos de jaleco. O maior desses magistérios é a hipocrisia. E o que mais argüir diante do que chamam de lei natural?

— É quase como um mecanismo pra continuar de pé e humilhando o outro.
Por trás do vidro se aproximam dois “macacos de jaleco”. Muito provavelmente dois estudantes quase formados. Apontam para a cobra e o rato. Cutucando, rindo, anotando algum número numa prancheta, num confere-desconfere desinteressado. Recombinando alguma beberagem ou trote estúpido aos calouros. Calçando luvas, abrindo a escotilha e...

— Vão pegar um de nós.

— Cretinos! Não respeitam nem minha hora de refeição — diz a cobra.
O rato puxa uma velha melodia de bicho de laboratório:

“Vou virar carpaccio
Vão me botar no vidro.
Me trocarão em miúdos
Farão de mim um cozido.

Minhas cavidades
vão encher de algodão,
injetarão substâncias, experimentos
e muitos sadismos de ocasião“

A cobra é içada. Ainda com parte do corpo dentro do vidro grita.

— Cinto ou bolsa!

— Cinto ou bolsa? Como assim? — questiona o rato.

— Meu sonho era morrer e virar cinto ou bolsa. Sapato não. É humilhante. Tinha uma tia megera que merecidamente virou sapato. Ah, deixa pra lá. Soube que compraram um equipamento novo. Talvez queiram testá-lo em répteis.

— O que farão de mim? O que agora sou? Rato-ração ou rato-rejeito? Vou pro moedor certamente.

O rato 312 de mãos espalmadas no vidro espesso da jaula vê o último silvo risonho da breve amizade com sua ex-devoradora. Num átimo de suposição imagina as contrações, seus ossos quebrando em agonia peristáltica no interior da cobra.

E a cobra vai mesmo pra máquina nova, vinda da Alemanha, ainda cheirando a plástico novo, de eletrodos recém-instalados. Mas, mesmo assim, rememora ele que ao menos alguma dignidade existe na relação bicho-bicho. E que o cinismo é um tipo de enzima que nunca fez efeito nos ratos.

Puxa o coro junto com outros 180 ratos do laboratório, numa freqüência que só os justos e dentuços podem ouvir:

“Nem todo texto gera textura.
Nem toda tinta nasce pintura.
Nem toda birra vira ruptura.
A vida vai e vem sem lisura.
Breve como o queijo sob a quentura.

Terror absoluto. Supera Dante.
Feio mesmo é o que esse
primata faz ao semelhante.”

O rato 312 se resigna com essa canção tão antiga e enfadonha e ainda faz paródia por conta:

“A vida é isso e não tem cura.
Triste mesmo é rima pobre.
Isso sim dá gastura!”

via "Karmo".